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Cuidado: conteúdo sensível


Você está habituado a ligar a televisão e receber um aviso antes do início dos filmes para alertar o público sobre cenas inadequadas, violência e outros temas. A Netflix também te avisa quando a gravação possui efeitos estroboscópicos ou outras particularidades que podem trazer desconforto ao telespectador. O audiovisual tem essa preocupação há algum tempo e como um produto de entretenimento tal qual o streaming, chegou a hora e a vez dos livros.

Redatores, revisores, editores, tradutores, designers e vários outros profissionais da cadeia do livro já devem ter se deparado com o termo Trigger Warning em alguma publicação. Se este não é o seu caso ou se você nunca viu ou ouviu falar sobre o tema, aqui vem uma explicação.

 

Os TW são tags, notas ou avisos contendo um breve alarme de que o conteúdo oferecido ao público pode conter conteúdos sensíveis. A tradução indica que os TW são avisos de gatilho.

 

Na literatura, os TW se disseminaram a partir das plataformas de autopublicação como o Wattpad, pois os criadores de conteúdo passaram a adicionar essa tag como forma de alertar os leitores. Alguns blogs também têm aproveitado esta estratégia, especialmente quando os conteúdos abordados em suas publicações girarem em torno de questões como suicídio, estupro ou assuntos com potencial de causar sofrimento alheio. Por isso há quem diga que o lugar de fala dos avisos de gatilho é essencialmente a internet e que qualquer informação desta natureza dada em uma nota introdutória de uma obra literária pode ser considerada spoiler.

Antes de pensar no spoiler, vale a pena lembrar que existem gatilhos mentais e emocionais. O gatilho mental é visto pela psicologia como estímulos recebidos pelo cérebro com potencial para influenciar diretamente nossa tomada de decisão. Especialmente utilizados no marketing e vendas, são aquelas decisões que tomamos como se estivéssemos no piloto automático para evitar o desgaste diante de tantas escolhas, ou aquilo que fazemos porque aprendemos que aquele é o comportamento adequado diante de uma situação. Assim, você decide assistir uma série apenas porque “todo mundo está assistindo”, ou compra um novo produto apenas por ser uma edição limitada, ou assiste a um filme que já viu inúmeras vezes na infância porque agora ele está em cartaz em live action.

Seguindo essa lógica, você adquiriu o hábito da leitura e aprendeu que ter um livro em mãos é algo prazeroso e interessante, que te leva a uma experiência diferente do seu cotidiano. E você compra o livro. É claro que você leu o texto da quarta capa e que provavelmente também leu a orelha antes de tomar a decisão de comprar. Também foi atraído pelo título e pelo design da capa ou então decidiu comprar em razão do apelo publicitário sobre a obra. De alguma forma, você tem o livro em mãos e dá início a leitura sem saber que as páginas seguintes têm potencial de despertar um gatilho emocional em você. E de repente a leitura já não é mais prazerosa — ela é perturbadora.

 

Gatilhos emocionais orientam nossa forma de agir diante de sentimentos dolorosos que podem ter sido adquiridos na infância ou não.

 

Eles surgem a partir de um evento desencadeador (no nosso exemplo, a leitura) e fazem com que a pessoa experimente uma reação emocional intensa, possa se sentir desorientada e até mesmo surpreendida pela intensidade das emoções, podendo ainda levar a uma resposta desproporcionalmente negativa. Por isso, considera-se de bom tom que haja um aviso de gatilho (TW) também na literatura, especialmente em obras inéditas ou reedições.

 

O FAMIGERADO SPOILER 

 

Não se trata de spoiler. O aviso de gatilho não conta a história completa e se o plot twist ou a grande surpresa do enredo é justamente uma cena de violência ou estupro, por exemplo, talvez seja de bom tom rever o conteúdo da obra. O mais importante, porém, é termos a consciência de que informar o leitor de que existem cenas fortes no livro, sem mencionar os nomes dos personagens ou o momento em que elas ocorrem na narrativa, pode ser fundamental para que alguém que está se recuperando de um grande trauma não tenha uma recaída.

É claro que o objetivo de todo autor é vender a sua obra e fazê-la chegar ao maior número de pessoas possível, mas isso não pode acontecer a qualquer preço. Em tempos em que a saúde mental é abordada em vários momentos e sob vários prismas, não se pode negligenciar o sentimento do outro.

 

Vale a pena arriscar ver o leitor sofrer apenas para não estragar uma experiência?

 

É claro que nem todo gatilho fará com que a pessoa necessariamente execute alguma ação destrutiva. Gatilhos de estupro, por exemplo, podem trazer à tona as memórias das vítimas de abuso, que podem sofrer de acordo com a sua estrutura psíquica atual e a ocorrência de pensamentos intrusivos, que surgem sem que seja possível controlar e que não são fáceis de serem retirados de cena. Na maioria das vezes, esses pensamentos soam impróprios e parecem sumir apenas depois de muitos exercícios ou cometendo uma determinada ação.

 

MAS ENTÃO TUDO É TW?

 

Novamente, não. A mente humana é extremamente complexa e não seria possível compreender tudo o que pode afetar o público de determinada forma. Pessoas que têm fobia a baratas, por exemplo, deixarão de ler Kafta? Talvez sim. Será que a obra terá pensamentos intrusivos e oportunidades de gatilho o suficiente para fazer com que o leitor coloque a sua saúde mental em risco? Talvez não. De qualquer forma, esse exemplo parte de um livro clássico que há muito já é de conhecimento público. Logo, dificilmente você irá presenteá-lo para alguém que tenha fobia de insetos.

A situação muda de figura quando falamos de uma obra inédita ou ainda de um autor desconhecido. É um excelente passo começar a construir o seu público de leitores sendo empático, demonstrando uma preocupação com o leitor, que é o seu cliente afinal. Normalmente, os avisos de gatilho são direcionados para conteúdos sensíveis como violência, abuso sexual e suicídio, em função de sua capacidade de desencadear pensamentos destrutivos. Isso não ocorre com cenas de beijos, por exemplo.

 

ENTÃO NINGUÉM MAIS PODE ESCREVER SOBRE NADA?

 

Não, mais uma vez. Partindo do pressuposto de que a literatura dialoga com a realidade e que eventos como abusos e suicídios ocorrem com uma frequência assustadora, não abordá-los seria negligenciar a vida real. Entretanto, vale a pena refletir se aquela cena capaz de provocar um gatilho é realmente necessária para a construção do personagem e para o desencadeamento da narrativa.

Histórias com temas sensíveis podem e devem ser contadas para mostrar que existem e que podem ser combatidas. Ocorre que muitas narrativas recorrem às cenas de abuso ou de suicídio como formas de chocar o leitor e ganhar alguns pontos com a audiência.

 

Ao romantizar as ações, escritores e editoras podem literalmente colocar a vida das pessoas em risco se não houver qualquer alerta sobre seu conteúdo.

 


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