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O colecionador de Sacis - Andriolli Costa


Andriolli Costa coleciona sacis. Não estamos falando sobre um homem matuto ou de alguém com Síndrome de Peter Pan. Pesquisador e jornalista, Andriolli é natural de MS, mestre em Jornalismo pela UFSC, doutor em Comunicação e Informação pela UFRGS e atualmente cursa o estágio pós-doutoral em Crícia Cultural na UNEB. Desde 2015 edita o site O Colecionador de Sacis e publicou um livro homônimo em 2020. A convite da Êxito, conversou conosco sobre o folclore e seus outros trabalhos.

Êxito: Você publicou o livro O Colecionador e Sacis e outros contos folclóricos, mas essa trajetória de “Colecionar Sacis” vem de mais tempo. Como os Sacis e o folclore entraram na sua vida?

Costa: Os sacis me acompanham desde a infância. Na verdade, a minha família toda tem um histórico com sacis que consegui traçar até a época da minha tataravó, no documentário Raízes, cuja pré-estreia foi em 2020. Sempre que eu ia passar as férias na chácara dos meus avós paternos em Terenos/MS, meu pai – que é professor universitário – contava com muito respeito: “o saci me perseguia nessa porteira”, “ali eu cai fugindo dele”. Não era com ar de brincadeira, mas de quem compartilhava parte da sua história comigo. Cresci aprendendo que saci não era coisa de criança, de gente com pouca instrução ou dos mais antigos, como ouvi muito por aí. Saci era coisa de Brasileiro.

Êxito: Como surgiu a ideia de escrever O Colecionador de Sacis?

Costa: Há muito tempo eu venho falando de folclore nas redes, seja pelo meu site, meu podcast ou vídeos. E nesse percurso passei a resenhar algumas obras inspiradas em folclore e, pouco depois, a fazer consultoria para escritores, artistas e produtoras que queriam trabalhar com isso. Então mesmo que o pessoal tivesse essa confiança no meu trabalho eu achava que faltava organizar uma produção que fosse minha e mostrar que era possível fazer tudo aquilo que eu encorajava os outros a fazer: escrever histórias que revisitem esse cenário tão familiar que é o imaginário brasileiro, mas que desvele essas crenças como caminhos para falar de nós. De nossos medos, nossas esperanças, nossos sonhos. Os mitos no meu livro ocupam muito esse papel de guias da consciência, que nos desafiam a enfrentar aquele lado sombrio que por vezes mantemos afastado de propósito. Isso também permite pensar as narrativas para muito além dos “monstros”, e entender que há um subgênero da fantasia inteiro a ser desenvolvido quando abraçamos essa experiência de brasilidade de maneira integral, e não como pastiche do que há lá fora. Não precisamos de um Vingadores do Folclore, de um Godof War brasileiro, por que Vingadores e God of War já existem. Precisamos de coisas novas, nossas e significativas.

Êxito: Histórias com elementos do folclore têm ganhado destaque em produções independentes ou autopublicações. Existe algum tipo de movimento de escritores ou leitores que esteja por trás desse impulso?

Costa:De certa maneira sim. Lá atrás, em 2014, houve uma tentativa de congregar os artistas independentes que produziam material inspirado em folclore com o grupo Vozes Ancestrais. Como todos éramos pequenos, reunir em eventos virtuais a base de cada autor ajudava a mostrar que havia não só um interesse em produzir, mas em consumir. Com o tempo, quem participava desse grupo foi desenvolvendo seus projetos paralelos e se organizando a partir de afinidades. Eu, que criei o Colecionador de Sacis em 2015, me reuni com os companheiros do projeto Folclore BR – Uma Nova Visão e começamos a produzir conteúdo com frequência para tentar orientar essa produção emergente em direção aquilo em que acreditávamos e acreditamos: trabalhos fundamentados em pesquisa com fontes sérias, respeito aos povos retratados, sentimento legítimo de afeto e pertencimento. 

Muita gente retruca dizendo que a arte não tem que ser isso e nem aquilo, e tudo bem. Não sou o juiz do que é certo ou errado em relação ao folclore. O que acredito é que como muita gente escreve falando que quer “valorizar nossa cultura”, “mostrar como o que existe aqui é tão rico quanto o que é de fora” e assim por diante, essa proposta não casa com uma pesquisa desleixada, uma representação estereotipada e preconceituosa e com o sentimento de desprezo pela cultura viva. 

Se há o desejo de valorizar, é preciso que você valorize, pesquise, escute, não é mesmo? Em um campo onde há tanto desconhecimento como é o da nossa própria cultura, mesmo escrevendo ficção é preciso estar atento. Será que é interessante descrever mitos de origem indígena (como Curupira, Anhangá, Jurupari) como “demônios sanguinolentos”, como tanto se anda vendo por aí? Isso não é demonizar a própria cultura indígena com uma sub-representação irrefletida? Atenção é preciso.

Já teve gente que veio falar comigo dizendo que odiava o Brasil, achava tudo o que era folclore ridículo, mas que queria escrever ainda assim sobre os mitos. Disse que eu não podia ajudá-lo. O afeto do qual sempre falo é um estado de espírito. Estar disposto a ser afetado pelo outro que é diferente de você, mas que também partilha muita semelhança. E detalhe: isso já era dito por Renato Almeida no seu Manual de Coleta Folclórica de 1960. Se não há comunhão, mas rejeição, o caminho do folclore não é o seu.

Êxito: Inserir personagens folclóricos em histórias é um reencontro com a nossa brasilidade ou com a cultura popular brasileira? 

Costa: Com certeza. Nos últimos 10 anos eu pude acompanhar pelas redes sociais uma grande transformação do público nesse sentido. Aqueles desacostumados a ver o Brasil nas páginas da literatura chiavam muito no começo, achando aquilo ridículo e não se reconhecendo ao ver um Brasil que não era o seu. Isto é, centrados no próprio apartamento enquanto umbigo do mundo, todo o resto era quase alienígena. Isso foi melhorando com o tempo, ao ponto em que as pessoas passaram a homogeneizar culturas como se não houvesse diferença entre regional e nacional. Não é por aí. Eu posso me fascinar, por exemplo, com os festejos da La Ursa no carnaval de Pernambuco. Mas essa é uma cultura tradicional justamente de Pernambuco e há um motivo histórico, sociológico, cultural, para que ela exista lá e não em outro lugar da mesma maneira. O mesmo vale quando falamos dos mitos e lendas. Por que se fala de um mito em tal lugar e não em outro? Fazer essa pergunta para si mesmo é o começo do caminho para desvelar essas relações históricas. 

Êxito: Você pesquisa o universo folclórico academicamente também. Qual é a importância de traduzir esse conhecimento popular em ciência acadêmica? Quero dizer, qual é a importância de trazer os saberes populares para a academia?

Costa: Quando pensamos, por exemplo, na Antropologia em seu sentido amplo – enquanto ciência do humano – um pensamento complexo deve ser capaz de compreender todas as faces da vida humana. Negligenciar, como desde a modernidade se negligencia, os saberes tradicionais; as práticas culturais que operam não no âmbito racional, mas no sensível; a potência simbólica das narrativas míticas, é ignorar um imenso cabedal de conhecimento. Quando levamos isso para a academia e depois para fora dela estamos combatendo a esse pensamento maquinístico (e que hoje está forte como nunca) que valoriza mais um martelo do que uma sinfonia, que só vê utilidade no material e esquece de questionar o próprio sentido daquilo que é “útil”. Por isso acho importante entender o folclore sim enquanto algo que tem função – como os folcloristas sempre disseram – só que, mais do que função, ele tem potência afetiva e sensível. É nesse nível que ele nos toca, nos envolve, nos afeta e por causa disso fazemos e vivemos folclore.

Êxito: E em sentido oposto, é importante estabelecer um diálogo da academia em direção à população?

Costa: Foi bem essa a minha trajetória. Em 2015 resolvi que os diálogos que eu travava na academia eram importantes, mas auto-contidos. Nunca iam para além da sala, do encontro, da palestra. Criar o site do Colecionador de Sacis e com ele iniciar um trabalho de divulgação folclórica que incluía de visitas a escolas à cursos de formação de mediadores de leitura; de lives e entrevistas à exposição em museu; de produção de podcasts à escrita do livro de contos; de projetos fotográficos à mostra de filmes de folclore, eram formas de criar multiplicadores. Crianças, jovens e adultos que iam ter outro olhar para a nossa cultura e que podiam passar essas histórias adiante.

Êxito: Podemos distinguir o que é popular do que é folclórico? 

Costa: Tudo o que é folclórico vem do povo, mas nem tudo que vem do povo pode ser considerado folclórico. Essa é uma máxima antiga sobre o campo. Para ser folclórico é preciso preencher certas categorias, sendo que basicamente será aquilo que caracteriza a identidade de um grupo social e é transmitido pela tradição e de maneira espontânea - fora dos âmbitos oficiais (isto é, em paralelo ao que diz a igreja, o governo, a escola). Às vezes surge um elemento que faz sucesso, mas é moda passageira e não impregna. Às vezes surge algo que é novo, mas que se comunica com tradições antigas e passa a fazer parte do folclore. Ou às vezes algo surge da cultura de massas (o que se chama de cultura pop, o braço industrial e mercadológico) e é apropriado pelo povo e se torna parte folclórico também. E lembrando: tecnologia e folclore não existem em polos opostos. Câmara Cascudo lembra que o laboratório, o transatlântico, o submarino, tudo pode ser fonte de folclore desde que inspire modos de sentir, pensar e agir reconhecidos pelo povo e transmitidos pela tradição.

Êxito: Para encerrar, poderia nos falar um pouco sobre o Poranduba? Qual é a ideia por trás do podcast e como podemos assistir?

Costa: Poranduba foi meu segundo podcast publicado. O primeiro, Popularium, era um programa roteirizado e com referências bibliográficas para abordar mitos e lendas em profundidade. Era um trabalho muito especial, mas era um monólogo. Criei Poranduba para ser um diálogo. Um programa de entrevistas e reflexões em que eu trago convidados para discutir todos os aspectos do folclore: artesanato, ervas, bebidas, festas e, claro, mitos e lendas que o pessoal adora. E mesmo para trazer vertentes diferentes de pensamento. Já entrevistei indígenas, por exemplo, que rejeitam o termo folclore, mas conseguimos estabelecer diálogos e construir pontes a partir de outros caminhos. Por lá já passaram benzedeiras, bastiões de folia de reis, diretores, quadrinistas, ceramistas, perfumistas, violeiros e, claro, meu avô. É um grande ponto de encontro.

Êxito: Que serviços podemos conhecer e usufruir através do Colecionador de Sacis? 

Costa: No site www.colecionadordesacis.com.br www.consultoriafolclorica.com.br  você encontra muito do que já fiz: artigos, entrevistas, lives, podcasts, vídeos, livros, revistas. E também os trabalhos que ofereço: consultoria, leitura crítica, contação de histórias, planejamento de projetos, oficina de iniciação ao folclore brasileiro e muito mais. É um trabalho sempre em construção e em busca de outros caminhos para chegar ao povo. Em 2021, meu grande projeto será a produção de um jogo analógico dedicado à nossa cultura popular. 

 

ANDRIOLLI COSTA
É membro da Comissão Sul-Matogrossense de Folclore e da Rede Folkcom. Foi um dos contemplados com o prêmio Selma do Coco de mestres da cultura popular pelo antigo Ministério da Cultura em 2017. É co-organizador das antologias Mitografias I – III.

 


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