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O que se esconde em um acidente de trabalho?


Se você chegou até aqui imaginando que os principais problemas da empresa seriam resolvidos a partir da identificação e desligamento do culpado, é melhor se ajeitar na cadeira e apertas os cintos. Depois de ler esta entrevista com os Doutores Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela e Kleber dos Santos (USP), que ministraram um minicurso no IFC Videira em junho, certamente você compreenderá que um novo olhar é necessário para a prevenção de acidentes – e dialogará com uma gestão integral com segurança organizacional.

 

 

O que é o M.A.P.A e como ele contribuiu para as análises em profundidade dos acidentes?

Rodolfo: Nós fizemos uma pesquisa em São Paulo em outras regiões para analisar acidentes para fins de prevenção indo além das causas comuns encontradas no Brasil, onde a visão predominante vem do erro humano, do operador, ou por uma falha técnica. Descobrimos que essas falhas são a ponta do iceberg, pois são explicadas por fatores organizacionais. A partir destas expertises desenvolvemos um Modelo de Analise e Prevenção de Acidentes (M.A.P.), em conjunto com o professor Idelberto Muniz de Almeida (Faculdade de Medicina de Botucatu – INESP) e com a equipe do CEREST Piracicaba, que serve para compreender as variáveis próximas e distais de um acidente. O modelo não é um check-list, mas tem suas diretrizes e um treinamento de no mínimo 40 horas para capacitar os analistas.

Kleber: na minha tese, utilizei o M.A.P.A. para montar um modelo conceitual de um acidente com material biológico e comprovei que locais com alta rotatividade, baixo efetivo, etc., estão mais propensos a ter acidentes. Isso quebra aquela visão do ato inseguro e mostra que os aspectos organizacionais têm mais forças na determinação do evento. O ato inseguro não deixa de existir, mas é consequência de coisas invisíveis, que não estão presentes no momento em que ocorre o acidente, mas que permeiam o ambiente sociotécnico. Por isso, é importante reconhecer os sinais de alertam que levantam possibilidades de prevenção através de uma análise do trabalha real, quando o seu sentimento empírico do trabalhador deve ser valorizado.

 

O que é trabalho real?

Kleber: A ergonomia francesa trabalha com as noções de trabalho real e trabalho prescrito. O trabalho prescrito é conjunto de atividades que o trabalhador precisa realizar, ou aquilo que a empresa espera que o trabalhador faça. Mas para realizar o trabalho esperado é necessário desenvolver uma atividade de trabalho real que é a forma como se consegue ou não realizar o que é preciso. Pode ser que, numa perspectiva de trabalho real, eu não consiga realizar a tarefa de em função de algum constrangimento, que na ergonomia francesa não se refere a questão sentimental, mas a algo dentro do ambiente que impeça a realização do trabalho. Na minha tese, já apresentada em Videira, trabalhei dois tipos de constrangimento dos profissionais de enfermagem: a pressão temporal para fazer o trabalho rápido e o equipamento de proteção individual que pode contribuir como um impedimento para que o profissional realize o trabalho corretamente. É fundamental entender o trabalho real.

Rodolfo: A análise do trabalho tem uma série de cuidados. O gestor não consegue fazer uma boa análise porque vai ter um viés, o trabalhador vai se sentir avaliado. Além disso, os cargos de chefia têm como referência o trabalho por escrito, que é, de certa forma, o trabalho idealizado que diz que você consegue produzir tantos produtos por hora, atender tantas pessoas por dia, etc. esse projeto de trabalho prescrito não considera a variabilidade, as mudanças que ocorrem ao longo do processo em função do cliente, do usuário, do meio, das pessoas. Se existe uma regra no trabalho é que o trabalho muda! É preciso recorrer a um terceiro, como um acadêmico, que esteja fora dessa relação entre o trabalho e a cobrança da gestão, para eliminar está certa desconfiança de parte a parte. O simples fato de perguntar como o trabalho é realizado já causa desconfiança. O trabalhador pode pensar que vai passar por uma avalição, ou que haverá um corte, etc. A análise tem que ser feita com neutralidade por alguém externo que crie um clima de confiança, baseando-se em uma metodologia. Uma análise de trabalho bem feito pressupõe uma pessoa saber fazer perguntas, analisar, escutar, compreender.

 

Então, a análise do trabalho exige uma interação entre trabalhador e pesquisador?

Kleber: Com certeza. Para fazer uma análise do trabalho real é muito importante a observação in loco, bem como dialogar com o trabalhador para entender como as atividades são realizadas. Você, que desconhece o trabalho, não tem como entender porque deve ser feito daquela forma apenas pela observação.

Rodolfo: E as vezes o trabalho que ele faz é diferente do que o outro realiza na mesma função, porque cada um tem uma história, uma competência, um jeito de fazer, um modo operatório próprio. Essa ideia do taylorismo de criar um padrão de processos foi uma tentativa de antecipação através da prescrição, mas hoje a complexidade do trabalho tornou a padronização difícil de estandardizar. As empresas estão buscando, mesmo que existam diferenças, criar seus indicadores de desempenho. Como se faz o trabalho é uma questão secundária! Esse é um paradoxo que implica em um gestor que, pensando resultados, não precise nem mais do trabalho prescrito – o necessário será uma equipe muito competente. A Google tem indicadores de quantas ideias animais os colaboradores têm por mês, quantas inspirações foram seguidas no mês e trouxeram um resultado tal.

 

Pois é, qual é a ideia dos gestores com essa tendência?

Rodolfo: Veja, isso tem a ver com a globalização, com o mercado de acionistas. O gestor quer ter instrumentos transparentes para que os acionistas identifiquem o que é a empresa, o que ela produz e em que quantidade, ou seja, quer avaliar o desempenho. Assim, colocam-se metas crescentes, as vezes paradoxais. A ideia do acionista é muito parecida com a gestão financeira, com resultado ultra imediatos. O banco é um sistema especulativo em que você vê o valor das ações pela manhã e pode colocar seu dinheiro nessa ou naquela empresa no tempo que desejar. A gestão caminha para essa realidade baseada numa aceleração crescente e isso, para a área de segurança, é um desastre porque o mundo da produção industrial é, muito diferente de uma produção financeira. Em um frigorífico, por exemplo, você precisa de estabilidade, equipe parada, gestão de segurança, treinamento, coerência, demora até que essas coisas se acertem e piora se a troca de pessoas for constante. A lógica do banco não combina com sistemas mais estáveis e os administradores muitas vezes vem sendo formados nessa lógica de que o bacana é ter indicador, avaliação de desempenho, qualidade, pressão sobre toda cadeia, avaliação em cascata e competição entre unidades ao invés de combinação entre unidades. Não podemos esquecer de casos trágicos causados por estas políticas que acorreu a British Petroleum, a empresaria inglesa que teve um grande vazamento no Golfo do México em. Seus indicadores de desempenho eram orientados de cima para baixo, priorizando o corte dos gastos, o que ocorreu na manutenção e segurança. Antes desse, outro acidente ocorreu na unidade considerada a melhor em indicações de desempenho afetivo. Houve uma festa de comemoração e depois de uma semana foi um estimulo à competição entre as unidades para ver quem cortava mais, quem era mais drástico – e mais drástico ainda foram os resultados. E agora vemos todas as ideias a respeito da indústria 4.0, que é muito interessante para um ambiente seguro, quando toda a organização está preparada para recebe-la. As industrias devem se perguntar como não fazer com que o feitiço vire contra o feiticeiro e isso só será possível a partir da preparação da organização para essas novas intervenções.

 

Como a indústria 4.0 vai afetar a SST?

Rodolfo: Nós não temos muitas pesquisas relacionadas à indústria 4.0, pois não é tanto o meu foco de pesquisa. Existem pesquisadores que são focados em acompanhar os processos tecnológicos e seus impactos na segurança, na qualidade do trabalho, de vida, enfim. O assunto é bastante complexo e tem uma dimensão muito grande. Hoje mesmo só fizemos um exercício sobre um trabalhador atingido pelo movimento de um robô em uma área considerada restrita, onde ele precisava entrar apesar da restrição do equipamento em movimento para realizar um conserto manual. As máquinas, por serem sistema lógicos programáveis, nem sempre funcionam 100% de acordo com o projeto porque, tal como no trabalho real, existe muita variabilidade no processo. Na ergonomia estudamos que a automação nunca é perfeita. Estamos diante de um sistema sociotécnico complexo em que eu posso ter uma máquina muito bacana, bem projetada, que tem uma incompatibilidade com o ser humano que não foi capacitado ou não tem o domínio necessário para lidar com ela.

O humano tem limites e as vezes a introdução da tecnologia vaie exigir um nível de velocidade que o ser humano não está preparado porque não fomos “fabricados” biologicamente para dar conta da rapidez exigida pela máquina.  Em contrapartida, o ser humano tem que acompanhar. Já tivemos muitos casos de adoecimento porque os trabalhadores tinham que corrigir constantemente os erros da máquina.

 

E as novas formas de trabalho que estão surgindo?

Rodolfo: É a questão da uberização, que não ocorre só com o Uber. Ela parte do conceito de um trabalhador que faz adesão a uma plataforma que não tem vínculo, não tem nenhum tipo de segurança do trabalhador em caso de acidente, não tem contribuição previdenciária, enfim, é como se fosse autônoma, mas é cativo do sistema porque depende dele para sobreviver já que ou sai do emprego formal ou tem na plataforma sua renda complementar, que é essencial. Um dos aspectos cruéis dessa adesão é que o Uber arrecada 25% de cada corrida. E para onde vai esse dinheiro? Ele está usando o espaço da cidade, o asfalto, o semáforo, a infraestrutura urbana e quem é que paga essa conta? O trabalhador tira a sua renda, mas paga manutenção do carro, gasolina, IPVA, e fica com uma dependência de um trabalho que, para garantir sua sobrevivência, exige uma jornada que ultrapassa qualquer jornada humana! A maioria dos trabalhadores do Uber extrapola a jornada. Quem é o responsável por uma batida causada por um trabalhador que está visivelmente exaurido? O próprio motorista! Além disso se quiser ter uma previdência, tem que pagar uma aposentadoria privada. Ficou tudo nas costas do trabalhador. Existem modelos como este atuando na área da saúde e muitas outras, com impactos tanto sobre a segurança quanto sobre o usuário. Quem faz a avaliação de qualidade é o cliente, sob quais critérios? A pressão sobre o trabalhador é muito grande. As novas modalidades de trabalho são preocupantes. O teletrabalho também é alvo de estudos em função das longas jornadas, condições de trabalho, etc. Em muitos congressos científicos temos visto um aumento do estudo dessas questões.


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